Terça-feira, 09 de maio de 2017
A
luz do quarto de Adriana Queiroz estava sempre acessa nas madrugadas. Ela
trabalhava durante o dia, estudava às noites e rezava para que quem apenas a
via como uma mulher negra, pobre e filha de analfabetos não quebrasse seu
sonho. Adriana não queria ser o que os outros esperavam dela, ela queria ser
juíza em um país onde a taxa de analfabetismo das mulheres negras (14%) mais
que duplica a das brancas (5,8%), segundo o IBGE.
Adriana, com 38 anos, é hoje titular da 1ª Vara Cível e da Vara
de Infância e da Juventude de Quirinópolis, em Goiás. Tem cinco pós-graduações,
estuda Letras nas horas vagas, mas já foi faxineira. Ela teve que se esforçar
muito mais que a maioria dos seus colegas de aula para vestir a toga. E
conseguiu. Hoje conta suas conquistas em um livro que acabou de lançar, Dez
passos para alcançar seus sonhos – A história real da ex-faxineira que se
tornou juíza de direito.
A magistrada, que sempre estudou em escola pública, foi a
terceira classificada no vestibular para cursar direito, mas a única faculdade
de sua cidade era privada. Não tinha como pagar, muito menos como cogitar uma
universidade pública em outra cidade. “Eu soube do resultado da prova numa
sexta e, na segunda, já tinha que fazer a matricula ou perdia a vaga. Tive três
dias para decidir o que fazer, ver se teria que abandonar”.
Ela resolveu, em seguida, pedir conselho e emprego a um
professor da cidade. Ele, que trabalhava no corpo administrativo da Santa Casa,
conseguiu uma vaga para ela na instituição. De faxineira. Adriana se orgulha
daqueles seis meses que limpou o hospital, mas o salário mínimo que recebia não
era suficiente para pagar a mensalidade da universidade e ainda ouvia chacota
dos colegas. “Força nos braços, advogadinha!”, lhe gritavam. “Esse episódio é
muito marcante para mim, justamente por esse preconceito de que alguém que exerce
um cargo como eu exercia não possa sonhar alto”.
Faltavam horas para o prazo da matrícula expirar quando Adriana
plantou-se na frente do diretor da faculdade. Compartilhou seu sonho de
estudar. “Ele se sensibilizou e me concedeu uma bolsa de 50% e diluiu o valor
da matrícula nas mensalidades. Assim, durante o dia trabalhava na limpeza e à
noite ia estudar”.
Para espanto dos seus conhecidos e familiares, durante a
faculdade, Adriana resolveu ser juíza. “Quando anunciei isso as pessoas ficaram
espantadas. Não era comum no meu contexto almejar um cargo tão alto. É como se
fosse algo inacreditável, faziam questão de frisar que eu era pobre e negra,
como se não tivesse nenhuma chance”, lamenta. Decidida, em 2002, terminou os
estudos, pediu demissão na Santa Casa, onde já tinha sido promovida ao corpo
administrativo e guardou suas coisas em duas sacolas plásticas. Partia para a
capital para se preparar. “Eu não tinha nem mala”, relata.
Após alugar um quartinho no bairro da Liberdade e se matricular
no curso preparatório para o concurso da magistratura o dinheiro da conta dava
para, no máximo, mais dois meses. “Foi um momento muito crítico, o dinheiro
estava acabando e eu não tinha conseguido trabalho”, conta Adriana. “Eu me vi
de novo nesse dilema de ter ou não que abandonar”. Não precisou. O diretor do
curso, o procurador Damásio de Jesus, viu nela uma “pessoa incomum”.
“Logo à primeira vista, olhando nos olhos daquela jovem advogada
de 24 anos, tive certeza de que estava diante uma lutadora, uma pessoa incomum,
de alguém que, sem dúvida, estava fadada a um grande futuro”, destaca o jurista
no prefácio do livro. Damásio ofereceu para ela uma bolsa de 100% do curso
durante dois anos e a empregou na biblioteca da instituição. “Fiquei sete anos
estudando, sábados, domingos e feriados. Quando as pessoas iam viajar, eu
ficava na biblioteca. Depois de inúmeras reprovações, eu consegui. Em janeiro
de 2011 passei o concurso e me tornei juíza em Goiânia”.
Caçula de seis irmãos, a única deles que tem ensino superior,
Adriana quer motivar agora com o livro a todas as pessoas que, assim como ela,
“sonham, mas estão desacreditadas”. “É possível romper os paradigmas sociais”,
encoraja. “Eu, particularmente, não sofro racismo hoje. Mas sim vivencio a
grande surpresa das pessoas quando me veem. Porque quando o advogado vai
procurar o juiz, ele não espera encontrar alguém como eu. Eu não me
importo. Eu fico feliz de ter quebrado esse paradigma”.
MSN