Quarta-feira, 20 de julho de 2016
A prática é comum em entre comunidades indígenas e já provocou
várias mortes
Mulheres
embera participam de um encontro para trocar experiências sobre mutilação
genital feminina BBC Brasil
"Vou te contar uma história das margens do rio
Garrapatas", me disse Laura*.
A história começa com o nascimento de uma
menina, o oitavo bebê de uma mãe da mesma localidade em que vive Laura, uma
indígena da tribo emberá, da Colômbia.
"Ela viu o que faziam as
parteiras", explica. "E não quis ficar de bobeira entre elas, por
isso fez sozinha: cortou com uma tesoura o clitóris do bebê, o atravessando
inteiro, e começou a jorrar sangue".
Laura se lembra que, no desespero, a mulher
não contou ao esposo o que tinha feito, mas disse que a pequena havia nascido
doente. "Coisa de espíritos", disse.
Eles caminharam dois dias para tentar curá-la
no cânion do Garrapatas, no limite dos Estados de Valle del Cauca e Chocó, no
oeste colombiano, uma zona remota e de difícil acesso. Mas não tiveram como
salvar a criança.
Por que o acordo de paz entre Colômbia e Frac é histórico
"A bebezinha morreu assim, jorrando
sangue, com hemorragia."
Cura e mutilação
A mulher não pensava em causar danos à filha
e o fez com base nas suas crenças, pensando que estava fazendo bem ao bebê, uma
"cura" —- como é conhecido o processo entre as indígenas, ou
"corte do calo". Os homens não participam do procedimento.
Na cultura ocidental, esse procedimento, chamado
de mutilação genital feminina (MGF) e é severamente questionada.
Tanto que o Fundo de População das Nações
Unidas (UNFPA), organismo da ONU responsável por questões populacionais e que
trabalha para erradicar esse tipo de procedimento, classifica como "uma
prática que implica na alteração ou lesão dos genitais femininos por motivos
que não são médicos e que é internacionalmente reconhecida como uma violação
dos direitos humanos".
Na legislação colombiana, a morte consequente
de uma mutilação genital está contemplada na lei do feminicídio de 2015.
"Anteriormente, quando nasciam,
amarravam as perninhas, compravam uma gilete... as meninas nascem com uma
coisinha assim (e com as mãos representa a vulva e com um dedo o clitóris),
então cortavam isso. Hoje em dia não se pode fazer isso porque dá cadeia".
Assim conta, sem esconder o temor, Irene
Guasiruma, uma anciã da comunidade de Wasiruma, no Valle del Cauca.
Ela está sentada na porta de uma das casas do
vilarejo - rodeados por montanhas onde se cultiva café e abacate - em que vivem
cerca de 40 famílias, a maioria crianças.
Dona Irene saiu mais cedo para ver os grãos
de seu pequeno cafezal e voltou falando em tom reflexivo: "Eu não tenho
isso, não tenho nada, tenho limpo. Como se chama isso? (não consegue pronunciar
a palavra clitóris e ri, com pudor, ao escutá-la). Isso, isso não tenho".
O problema da linguagem não é menor na hora
de falar sobre esse assunto.
As mortes de duas meninas em 2007 no Estado
de Risaralda (no centro do país) chamou a atenção do país para a prática da
mutilação genital feminina entre os índios emberá. Desde então, as autoridades
e organismos internacionais tentam conscientizar os indígenas da região.
Visitaram uma comunidade em que as mulheres
não tinham palavra para denominar o clitóris. Quando apontaram o local do
clitóris no desenho de um corpo feminino, elas disseram: "dor".
E eu pergunto à anciã Irene se ela já
praticou a mutilação.
"Não, eu nunca assassinei meninas.
Pobrezinhas, como alguém vai cortar isso? Minha mãe gostava de cortar as
meninas, mas nunca matou ninguém, cortava de forma perfeita".
Algo peculiar
Um pouco antes dessa conversa, ela estava
sentada com mais de uma dezena de crianças ao seu redor e contando histórias
tradicionais, como a da menina que virou sereia.
Os mais idosos cumprem um papel essencial na
comunidade emberá, são sua memória viva, e referência para os mais jovens,
inclusive líderes, conselheiros e governadores, que vêm até eles para pedir
conselhos e tomar decisões de acordo com o que diz o conhecimento tradicional.
No geral, os idosos são médicos tradicionais,
e as idosas são botânicas, como Irene.
Durante nossa visita, um médico tradicional
do mesmo vilarejo trabalhava com um companheiro jogando água misturada com
diferentes plantas sobre os que entravam em uma casa para "limpar"
todos os presentes de espíritos negativos.
Era um encontro para falar sobre a mutilação
entre os emberá, que contou com vários homens e mulheres dessa e de outras
tribos indígenas, assim como representantes do Estado e da ONU.
Mas algo particular aconteceu nesse evento.
Em uma das últimas palestras do dia, uma anciã de outra tribo, Blanca Lucila
Andrade, deixou todos perplexos ao admitir que não somente ela havia sido
submetida à mutilação genital, como que também tinha realizado o procedimento,
como parteira tradicional, com suas quatro filhas e netas.
Blanca não é emberá, mas da tribo nasa, do
Estado do Cauca. Basicamente, ela acabava de derrubar a teoria de que a prática
havia sido erradicada entre os nasa. E falava com um espírito de resistência.
Ela conversou comigo depois da apresentação.
Uma mulher pequena e forte, elegante em seus trajes e chapéu tradicionais.
"Agora quando uma família me diz que
quer que eu faça, eu faço; mas se me dizem eu não querem, não faço. É uma coisa
rara, mas nunca sangram quando eu faço".
Ela já tinha sido advertida de que se trata
de um procedimento nocivo, o que a deixou "surpresa".
Guerrilha das Farc recrutou 11.556 menores entre 1975 e 2014
Claramente, a prática não acabou, nem entre
os nasa, nem entre os emberá.
Recentemente foram reportados dois casos de
meninas emberá no estado do Valle del Cauca que apresentaram infecções
generalizadas por causa da mutilação.
Consequências
"As consequências físicas mais
frequentes são as infecções localizadas, porque é uma região coberta e úmida,
onde não se fazem curativos", explica Leonardo Quinteros Suárex, do
Instituto Nacional de Medicina Legal da Colômbia.
"Também podem ocorrer sangramentos
longos, que levam à perda massiva de sangue e podem levar à morte".
As sequelas podem afetar a vida cotidiana das
meninas e mulheres e complicar partos.
A maioria dos casos de MGF ocorre na África e
no Oriente Médio, onde, até 2008, mais de 140 milhões de meninas e mulheres
haviam sofrido algum tipo de mutilação genital.
A ONU estima que, a cada ano, 3 milhões de
meninas correm o risco de ser mutiladas e morrer por consequência disso em todo
o mundo.
Na América Latina, há registros informais da
prática da mutilação em grupos indígenas- e alguns de ascendência africana - de
Brasil e Equador até o México, ainda que se acredite que na maioria deles ela
tenha sido erradicada ou desaparecido.
Mas não entre os emberá, a segunda maior
tribo indígena na Colômbia - são cerca de 250 mil índios - uma nação que chega
às fronteiras do país com Equador e o sul do Panamá ao norte. Por isso, a ONU
está investigando a possibilidade de existirem casos também nesses países.
"Dizem que eles fazem com uma tesoura ou
uma gilete ou o queimam com uma colher - a esquentam no fogo e vão machucando
para chamuscar o clitóris da menina", explica Laura sobre como é a prática
na comunidade emberá (não é em toda tribo, mas fundamentalmente entre os emberá
Chamí).
Algumas outras pessoas me contaram que se
pode cortar apenas com a folha afiada de uma planta. Há parteiras tradicionais
que dizem fazer a "cura" simplesmente colocando plantas na região da
vagina.
Estimativas apontam que, entre os emberá
Chamí, duas em cada três mulheres sofreram mutilação. Mas os dados não são
confirmados, nem oficiais.
'Como assim, vocês não fazem?'
Em 2007, quando os casos de Risaralda vieram
à tona, muitos criticaram os emberá, especialmente as parteiras tradicionais,
geralmente encarregadas de realizar a mutilação.
Isso acabou causando muita confusão entre os
emberá, que acreditam que a vida é sagrada, e ao mesmo tempo não podiam
entender como algo que supunham ser benéfico poderia causar a morte.
"O principal desafio é que essa é uma
prática tradicional e muitas comunidades acreditam que não é maléfica",
resume Jorge Parra, representante do Fundo de População das Nações Unidas
(UNFPA) na Colômbia.
Para os emberá é um parâmetro de normalidade.
Quando uma funcionária do governo foi falar com as mulheres da comunidade, a
primeira pergunta que estes lhe fizeram foi: "Como assim, vocês não
fazem?".
Em 2007, órgãos do Estado e entidades
internacionais chegaram a considerar se seria o caso de tirar as meninas que
haviam sido submetidas à mutilação de suas mães e entregá-las a uma entidade
encarregada de zelar pelos menores.
Com isso, surgiu o risco de a comunidade se
fechar em si mesma, o risco de que uma prática silenciosa ficasse ainda mais
ocultada por medo: medo do escárnio público, de perder suas filhas, até medo de
prisão.
Por que fazem isso?
Há varias explicações sobre as razões de os
emberá e os nasa praticarem a mutilação feminina, mas fundamentalmente se
acredita que a prática poderia eliminar o desejo de uma mulher de estar com
outros homens que não sejam o marido.
"Assim, ela se torna uma mulher que será
aceita pelo homem que se converta em seu esposo", explica Irene Guasiruma.
"Por isso, anteriormente cortavam essa
coisinha, porque se a mulher não tem isso, não tem nada de fogosa, não fica
excitada", disse.
Mas logo, ela mesma assegura: "Pura
mentira, até quando se tem isso cortado também se busca outro marido, se troca
de marido".
Entre os emberá existe ainda a crença de que
o clitóris pode crescer e se converter em um pênis.
Tanto que, para demonstrar que isso não
ocorria, uma enfermeira do hospital de Mistrató, em Risaralda, cuja equipe
começou a trabalhar com a comunidade depois dos casos de mutilação que vieram à
tona em 2007, reuniu um grupo de parteiras emberá, as juntou todas em um
quarto, ficou nua e lhes mostrou o próprio clitóris como prova.
A origem
De acordo com o historiador Victor Zuluaga,
há três versões sobre a origem dessa prática.
Por um lado está a ideia de que se trata de
uma prática ancestral da comunidade, por outro, que foi introduzida por um
grupo de monjas no início do século 20 e, finalmente, que foi algo que os
indígenas adaptaram dos escravos negros muçulmanos que vieram de Mali no século
18.
Zuluaga está convencido de que a última
hipótese é a mais provável.
"É uma teoria bastante
consistente", diz Esmeralda Ruiz, consultora da UNFPA sobre temas de
mutilação.
Os defensores dessa teoria acham que, ao
implicar que não se trata de um costume ancestral da própria tribo, seria mais
fácil abandoná-lo.
"Se as parteiras tradicionais acreditam
que é da cultura da tribo elas, não vão abandonar a prática. Mas se entendem
que não é originária da cultura delas, vão dizer : 'ah então podemos deixar de
fazer, não tem problema'", disse Ruiz.
E em qual delas os emberá acreditam? Depende.
Depende da zona onde vivem, da idade, de quão arraigada está a convicção de que
se trata de uma prática tradicional.
Alberto Guasiruma, conselheiro ancião da
Organização Regional Indígena do Valle del Cauca, explica que nesse momento há
uma discussão sobre se essa é uma prática que deve ser abandonada ou mantida, e
que há posições dos dois lados.
Ele pede ao governo colombiano que as
intervenções sejam feitas com base em reflexões internas da própria comunidade.
"É um tema que requer muita reflexão,
porque não é uma decisão fácil de tomar. Creio que não é uma decisão que das
autoridades, mas da comunidade em seu conjunto e a última palavra é dos
anciões. É um tema muito mais das mulheres, de como elas se sintam
melhor".
* Nome fictício.
BBC
Brasil