Segunda-feira, 05 de setembro de 2016
TRAPANI, ITÁLIA - Em
uma madrugada de agosto, 11 barcos foram lançados ao mar da costa da Líbia com
304 pessoas a bordo rumo à Itália. Numa pequena embarcação de madeira, viajavam
oito famílias sírias. O mar parecia calmo, como de costume na orla, e o contrabandista
garantiu que em duas horas estariam em terra firme.
Na medida em que
venciam os 41km das águas territoriais líbias, o mar agitava-se mais. Os barcos
desapareciam entre as ondas e isso, aliado à inexperiência do condutor, fez com
que se afastassem. Os passageiros de um dos botes viram quando uma grande onda
virou o barco com os 27 sírios e jogou-os no mar. Lotado, sem comunicação para
pedir socorro ou combustível para retornar, seguiu viagem — os traficantes
jogaram as embarcações ao mar com combustível apenas para chegar até águas
internacionais, onde operam os navios de resgate no Mediterrâneo.
Com o filho de 5 anos
num dos braços, Abdel Azis El-Assaf tentou segurar a mulher com o outro, mas
teve de largá-la para socorrer a filha. Ele nadou até a menina, mas, ao se
aproximar, viu que já estava morta. Ao nadar de volta, já não encontrou a
mulher. Provavelmente, afundara — o grupo usava colete salva-vidas, mas a
maioria dos entregues por traficantes são preenchidos com nada além de espuma.
O resgate dos sobreviventes veio de manhã, quando um barco de pescadores
avistou-os no mar. Até o fechamento desta edição, os corpos de Jihan Abdullah
Aissa, de 30 anos, grávida de cinco meses, e da filha do casal, Tasneem, de 2
anos, continuavam desaparecidos.
Duas crianças
morreram por dia no Mediterrâneo no último ano, desde setembro de 2015, quando
a fotografia do corpo do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado numa praia da
Turquia, chocou o mundo. A imagem se tornou símbolo da tragédia dos refugiados
que tentavam chegar à Europa, comoveu opinião pública e obrigou União Europeia
a responder à tragédia, mas não evitou que outras 4.376 pessoas morressem no
mar desde então.
— Tentar manter as
pessoas fora (da Europa) não está funcionando. O fechamento das fronteiras e a política
para refugiados adotada pela UE reduziram as chegadas, mas o número de mortos
continua crescendo. Isso indica que estão chegando por meios mais perigosos e
rotas mais letais, como Líbia-Itália — diz Andrea Ciocca, coordenador de
operações da ONG Médicos Sem Fronteiras em Trapani.
Mais de 86% das
mortes no mar este ano ocorreram entre o Norte da África e a costa da Sicília.
Entre janeiro e agosto, 2.726 pessoas morreram ou desapareceram ao fazer essa
travessia, de acordo com Organização Internacional para as Migrações (OIM) —
quase o total de mortos em todo o ano passado na mesma rota.
‘Sistema de controle e não assistência’
Uma em cada 39
pessoas que tentaram a travessia morreu — uma taxa de mortalidade pouco aquém
da do ebola em Serra Leoa, na última epidemia, e 11 vezes maior do que na rota
via Grécia, mais curta, mas menos usada após o acordo da UE com Turquia para
deportação de novos refugiados. Jihan e Assaf arriscaram-se via Líbia porque a
irmã dela, que chegou à Grécia com o marido e dois filhos há cinco meses,
viu-se encurralada no país, sob ameaça de ser devolvida à Turquia. Cinquenta
mil pessoas estão nessa situação — 38% delas crianças — vivendo em “campos de
detenção”, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.
Policial carrega o corpo sem vida de Aylan em praia na Turquia - Uncredited / AP
A família fugiu de
Raqqa, “capital” do Estado Islâmico (EI) na Síria, onde viveu um roteiro de
abusos, tortura e prisões. Karom Fihan, de 20 anos, foi o único que conseguiu
cruzar a fronteiras da Europa e refugiar-se na Holanda, após ser preso duas
vezes pelo EI — a primeira, por fumar; a outra, por não atender à convocação do
grupo. Ao desembarcar em Palermo para ajudar o primo na busca pela mulher e a
filha desaparecidas, pediu:
— Só não me leve para
perto do mar.
O instituto médico
legal, onde estavam os cinco corpos resgatados na noite do naufrágio, fica num
prédio com vista para o Mediterrâneo — “bonita e morta” disse Karom, ao
observar a vista. Três dos corpos eram de Dania e Alaa, de 1 e 2 anos, e a mãe,
Raja Saleh, de 36. O marido, Yasir Ahmad Ramadan, de 40, foi o único
sobrevivente da família.
A reportagem
conversou com Azis e Yasir no centro para refugiados de Trapani, antiga prisão
vigiada pelo Exército, para onde são levados os que chegam por mar. Confusos e
chorando muito, eles estavam impedidos de deixar o local. Usavam uma espécie de
uniforme e eram vigiados por funcionários — um deles avisou que Karom só teria
dez minutos com o primo. Por lei, os refugiados só podem ser mantidos por até
72 horas. Na prática, ficam por tempo indefinido.
— Todo o sistema
receptivo é de controle e não de assistência — denuncia a ativista marroquina
Nawal Soufi.
Azis ainda acreditava
que a mulher estava viva. Ele contou que o traficante assegurou-lhe que, por
ser mais leve, o pequeno barco de madeira era seguro. Pelo serviço “vip”,
exclusivo para os 27 sírios, cobrou US$ 1.700 (R$ 5.500) por adulto e US$ 1.000
(R$ 3.260) “com desconto especial” para as crianças. Dias depois, Azis e o
filho foram transferidos a um abrigo em Roma. Mas, sozinho, sem documentos ou
dinheiro e sem falar italiano, tem medo de sair. Passa os dias revendo a
tragédia e remoendo a culpa por não ter podido salvar as duas. Seu filho brinca
com outras crianças. Por vezes, pergunta pela mãe e irmã.
— A sensação de viver
na Europa é a mesma que estar no cárcere — comenta Karom. — Estamos vivos, mas
sem nossas famílias e sem liberdade.
O Globo