Segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Matéria do Portal Correio
Professor João Trindade (Foto: Portal Correio)
Considerada por muitos como
“livro sagrado”; por outros como uma “grande obra de ficção”, a Bíblia encanta,
não só pela diversidade de metáforas e imagens, pela perfeição do estilo, bem
como pela correção da linguagem. Não é à toa que os maiores autores da
literatura brasileira, entre eles os declaradamente ateus Graciliano Ramos e
Machado de Assis, citavam-na como a maior obra que já haviam lido e como “livro
de cabeceira”.
A seguir, trechos dela,
analisados à luz do nosso idioma:
Mateus 1.18:
“Ora, o nascimento de Jesus
Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se
juntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo.”
Esse versículo nos faz
observar o seguinte: Após dois pontos, usa-se letra maiúscula se a pessoa vai
começar novo segmento semântico (novo bloco de ideias), e minúscula se o
pensamento após os dois pontos é uma continuidade do anterior. Por isso, no
trecho citado se usou letra maiúscula após os dois pontos. Usaríamos letra
minúscula se disséssemos, por exemplo: Ontem à noite, próximo à lagoa, foram
cometidos dois pequenos furtos: um em frente ao Bompreço e outro em frente ao
edifício Viña Del Mar.
Observamos, ainda no
segmento, a presença de um aposto explicativo: Maria, “sua mãe”. “Sua mãe” está
explicando quem é Maria em relação a Jesus. As vírgulas foram usadas porque se
usa vírgula para isolar o aposto explicativo. Desposada significa casada.
Idem, 1.19:
“Então José, seu marido, como
era justo, e a não queria infamar, intentou deixá-la, secretamente.”
“Seu marido” é, também,
aposto explicativo; está explicando quem é José em relação a Maria. Conforme já
se disse, usa-se a vírgula para isolar o aposto explicativo. A oração “como era
justo” equivale a porque era justo; é uma adverbial causal. Como está deslocada
(no meio da principal) teria que ser isolada por vírgula. Infamar é atribuir má
fama. Intentar, no texto, significa ter intenção. “La” é objeto direto de
deixar. Deixá-la tem acento porque as formas verbais combinadas com pronome
resultantes em oxítonos devem seguir a regra destes. ‘Secretamente’ é adjunto
adverbial de modo.
Idem 1.20:
“E, projetando ele isto, eis
que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não
temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito
Santo.”
As vírgulas depois do ‘E’ e
de ‘isto’ estão isolando a oração adverbial deslocada (reduzida de gerúndio)
“projetando ele isto”. Note que a causa das vírgulas não é o conectivo E, mas
sim o fato de a oração estar deslocada. A rigor, a expressão “em sonho” deveria
vir isolada por vírgula, por ser um adjunto adverbial; no entanto, quando o
adjunto adverbial é curto, admite-se descartar a vírgula. A vírgula antes de
“dizendo” existe porque separa a oração anterior da oração adjetiva reduzida
dizendo (= o qual disse). A forma “não temas” está na segunda pessoa do
singular do imperativo negativo, que usa como suporte o presente do subjuntivo
(que eu tema, que tu temas…). O sujeito, aí, está oculto. Não temas (tu).
“Não temas receber a Maria”.
Na verdade, o verbo receber, no contexto, é transitivo direto: receber Maria. O
narrador, por uma questão estilística, preferiu colocar a preposição A,
dispensável. “Maria” é objeto direto preposicionado.
Idem 1.21:
“E dará à luz um filho e
chamará o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.”
“Dará à luz um filho”. O
verbo dar, nessa construção, é transitivo direto e indireto. Temos “um filho”
como objeto direto e “à luz” como objeto indireto. É interessante notar que
após Jesus colocou-se ponto-e-vírgula. Poder-se-ia ter colocado vírgula. A
questão é estilística: Dando uma pausa maior, o narrador deu mais ênfase à
ideia de que Jesus salvaria seu povo dos pecados. O segundo “seu” seria
dispensável.” Chamará” tem acento gráfico por ser uma palavra oxítona terminada
em A. são acentuados os oxítonos terminados em A(s),E(s), O(s), ÉM, ÉNS. Na
mesma regra se enquadra dará.
Idem 1.22:
“Tudo isso aconteceu para que
se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo profeta, que diz;”
Aqui tivemos, no mesmo
período, as vozes passivas sintética e a analítica. “Para que se cumprisse” é uma
sintética que equivale à analítica “fosse cumprido”. O SE, nesse caso, é
pronome apassivador. “O que foi dito” é analítica que equivale à sintética “o
que se disse”. O sujeito de “aconteceu” é tudo isso. “Profeta” é agente da
passiva de foi dito. O agente da passiva é acompanhado de preposição; no caso,
a contração pelo.
Idem, 1.23:
“Eis que a virgem conceberá,
e dará a luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é Deus
conosco.”
Gramaticalmente, não deveria
haver vírgula depois de conceberá, porque a virgem é sujeito de ambas as
orações (conceberá e dará à luz). Por uma questão estilística, porém, o
narrador usou um polissíndeto (repetição insistente de uma conjunção) para dar
maior ritmo ao texto e ênfase ao pensamento. É uma construção equivalente
àquela famosa frase do poema bilaqueano: “Trabalha, e teima, e lima, sofre, e
sua…”. A segunda vírgula, sim, deveria existir, porque o sujeito da oração que
se inicia com chamá-lo-ão já é outro (indeterminado). Na forma chamá-lo-ão,
temos uma mesóclise (colocação do pronome no meio do verbo). Usa-se a mesóclise
com os verbos no futuro do presente e futuro do pretérito. No caso, usou-se o
futuro do presente (chamá-lo-ão).
1.24:
“E José, despertando do sono,
fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu a sua mulher.”
“Despertando do sono” está
entre vírgulas porque essa é uma oração adverbial temporal, reduzida de
gerúndio, deslocada. Não deveria haver vírgula depois de ordenara, porque José
também é sujeito de recebeu. Ordenara está no mais que perfeito do verbo
ordenar. O mais que perfeito tem a desinência RA (RE) átonos (cantara, bebera,
partira). A desinência RA (RE) tônicos caracteriza o futuro do presente
(cantarei, cantarás…). A desinência RIA caracteriza o futuro do pretérito (cantaria,
cantarias…). “Como o anjo do senhor lhe mandara” (= conforme o anjo mandara) é
oração subordinada adverbial conformativa (= ideia de conformidade). Não havia
necessidade do artigo “a” antes da expressão a sua mulher.
1.25:
“E não a conheceu até que deu
à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus.”
E não a conheceu. “A” é
objeto direto de conheceu. “Não”, morfologicamente, é advérbio de negação e,
sintaticamente, adjunto adverbial. “Seu” é pronome possessivo. “Primogênito”
tem acento porque é palavra proparoxítona e todas são acentuadas. “Pôs” tem
acento por ser monossílabo tônico terminado em o, seguido de S. São acentuados
os monossílabos tônicos em A(s), E(s) e O (s). “Não a conheceu” é uma figura de
linguagem chamada eufemismo (Usa-se para abrandar determinada expressão). O
narrador usou “não conheceu” para não dizer manteve relações sexuais.
Por: Portal Correio