Quinta-feira, 07 de julho (07) de 2022
Desemprego, alta nos preços dos produtos e queda na
renda fazem com que mais pessoas dependam de cestas para sobreviver
Com perda de renda e desemprego, mais famílias em comunidades
precisam de doações DIVULGAÇÃO / G10 FAVELAS
Mais de 33 milhões de brasileiros passam
fome, de acordo com dados divulgados pela Penssan
(Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
O impacto da perda de renda e desemprego pode ser sentido de forma mais
intensa nas comunidades do país. As doações despencaram e cada vez
mais famílias buscam por uma cesta básica.
Apenas 4 a cada 10 lares conseguem ter acesso à
alimentação. Em dois anos de pandemia, 14 milhões de pessoas entraram para o
grupo que sofre com a fome e se somaram aos 19 milhões já existentes.
"A fome é a expressão mais trágica do
empobrecimento de grande parcela da população", afirmou Nilson de Paula,
pesquisador da Rede Pensann.
Em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, cerca
de 3.000 cestas eram distribuídas ao mês antes da Covid-19. Hoje, esse número
não chega a 100.
"A procura está muito grande e temos recebido
pouquíssimas doações. Para quem trabalha, os preços subiram e os salários
diminuíram, assim compram menos. O desemprego está alto ainda. Quando chega uma
cesta, a gente entrega para a família que não tem o que comer. Não tem mais
data para entrega coletiva", afirma Antônia Cleide Alves, presidente da
Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e
Região).
"A tragédia só veio para
escancarar e potencializar a miséria que já estávamos vivendo. Junto a isso,
vieram as perdas e as mortes"
Francisca Ferreira de Lima tem 74 anos e, por causa
de um problema na coluna, quase não consegue sair da cama. É moradora de
Heliópolis "desde que tudo aqui era só barraco". Hoje vive de doações
porque a aposentadoria só dá para pagar os remédios e algumas despesas.
"As coisas estão caras, os preços subiram.
Ninguém tem condições de comprar carne. Não recebo todo mês doação. Com a cesta
básica, eu tenho o que comer. Falta mistura, o gás é caro. Tô em cima da cama,
sem poder andar. Quando andava, eu mesma ia atrás de cesta. É difícil",
revela.
Dona Francisca tem dois filhos que estão
desempregados e não conseguem ajudá-la financeiramente. O marido morreu em
fevereiro e ela não tem mais a Loas [benefício sócio-assistencial pago pelo
INSS] que ele tinha direito. Sem convênio, aguarda uma cirurgia, mas ainda nem
está na fila do Sus (Sistema Único de Saúde).
Doações caíram na pandemia, e cestas básicas são entregues para
as famílias mais necessitadas CARLA
CARNIEL/REUTERS - 14.04.2021
Heliópolis
A comunidade da zona
sul da capital paulista tem 220 mil moradores e cerca de 30 mil famílias estão
cadastradas na Unas. No entanto, hoje a distribuição de doações atende outros
critérios, como necessidade, os que estão sem gás de cozinha, desempregados,
idosos, quem tem mais filhos. "Tá difícil, sabe? A necessidade é muita.
São as que estão no perrengue mesmo", explica a líder comunitária.
Outro agravante é que muitas famílias que receberam o Auxílio
Emergencial na pandemia hoje ainda não conseguiram a aprovação para o
benefício. Segundo Antônia Cleide, são muitas famílias no desespero:
"Esperam até cinco meses para análise do cadastro. Todos os dias vêm, no
mínimo, quatro pessoas para ir no Cras [Centro de Referência de Assistência
Social]. Tento conseguir também via Conselho Tutelar".
“As coisas estão caras,
os preços subiram. Ninguém tem condições de comprar carne. Com a cesta básica,
eu tenho o que comer
Maria das Graças Rodrigues Gomes Viana está
desempregada. Ela mora com a filha de 30 anos. As duas fazem bicos e só veem os
gastos subir.
"Queria me aposentar para não depender de
ninguém. Os bicos acabaram na pandemia. Faço faxina a cada 15 dias em uma casa
por R$ 240. Também passo roupa por R$ 100. Eu trabalhava na reciclagem, mas
fiquei doente. Minha filha está entregando currículo e faz bico com
caça-níquel. Tenho 58 anos e o povo já olha pro cabelo branco", pontua.
A casa é própria, mas só tem uma geladeira e uma
máquina. "Vamos no mercado pechinchar, não dá pra fazer despesa. O quilo
do feijão está R$ 10, o sabão em pó quase R$ 30. Meus cartões estão parados.
Virou uma bola de neve e estou renegociando, uma hora nós saímos disso",
acredita.
Paraisópolis
De acordo com a
pesquisa da Penssan, há um estado emergencial de fome no país. Hoje cerca de
125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar, o
que representa 58,7% da população.
Na segunda maior favela de São Paulo, os moradores de
Paraisópolis fazem filas em pontos de distribuição de comida. Antes eram
distribuídas 3.000 marmitas ao dia, agora, no máximo, 300. Na comunidade, eram
750 cestas entregues diariamente, e hoje 200, ao todo, no mês.
Marmitas doadas no almoço em Paraisópolis REPRODUÇÃO/ G10 FAVELAS
Para o presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues,
a periferia foi a mais afetada pela pandemia. “O morador de comunidade é o
primeiro a ter o emprego cortado, e o último a voltar para o mercado de
trabalho. Nunca existiu home office dentro da favela. O que existe é fome e
falta de investimento”, destaca.
Segundo ele, até 10.000 marmitas chegaram a ser
entregues no auge. "Caiu muito a doação. Já estamos envergonhados porque
quem ajuda são as mesmas pessoas. A entrega é por ordem de chegada. Pode ser
que alguns não consigam porque a comida acaba e a fila continua", ressalta
o líder comunitário.
As marmitas são feitas por voluntários com doações.
Elas têm arroz, feijão, ovo, às vezes carne, e legumes. Mulheres com crianças e
idosos são maioria na fila. Além dos alimentos, é preciso ter gás de cozinha, e
o botijão chega a custar R$ 150 na comunidade.
"Paraisópolis é o
retrato do Brasil, mas com um agravante: a localização. Os moradores do Morumbi
reclamam dos pancadões, da violência, e não nos ajudam" (GILSON RODRIGUES, G10 FAVELAS)
Em
Paraisópolis, moram 120 mil pessoas. Segundo estimativa do G10 Favelas, até 20%
da comunidade está passando dificuldade financeira ou insegurança alimentar.
Gilson complementa: "É a mão de obra de menos escolaridade e são os que
sentem os primeiros impactos da inflação, desemprego e queda no salário. Para
combater a fome, a melhor forma é dinheiro no bolso".
Cada família tem direito a uma marmita, e é preciso ficar na fila para receber a doação REPRODUÇÃO/ G10 FAVELAS
Empreendedorismo
No G10 Favelas, que atualmente representa o maior bloco de
empreendedores sociais dentro de comunidades, ações foram estruturadas para
impulsionar o número de negócios nessas regiões, o que gera renda aos moradores.
Empresas já movimentam R$ 8 bilhões ao ano nas favelas em que atuam.
De acordo com Gilson Rodrigues, são 18 iniciativas de impacto
social, como formação em cursos de costura, moda, beleza e logística, que
pretendem ajudar a população a empreender e não ficar parada.
"A fome é a expressão
mais trágica do empobrecimento de grande parcela da população" (NILSON DE PAULA, PESQUISADOR DA PENSANN)
A entidade tem hoje 4.000 presidentes de rua, que
são moradores voluntários das comunidades que cuidam de até 50 famílias e são
responsáveis por atender as demandas nas favelas.
"Paraisópolis é o retrato do Brasil, mas com
um agravante: a localização. Os moradores do Morumbi [bairro vizinho, em área
nobre] reclamam dos pancadões, da violência, e não nos ajudam", revela o
presidente do G10.
Pernambuco
O número de pessoas com renda domiciliar per
capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de
brasileiros em 2021, cerca de 30% da população total do país. A pesquisa Mapa
da Nova Pobreza, do FGV Social (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio
Vargas), revela que são 9,6 milhões de pobres a mais em relação a 2019, o
equivalente à população de Portugal.
Na pandemia, o maior aumento foi em Pernambuco: de 8,14 pontos
percentuais. As únicas quedas de pobreza ocorreram no Tocantins (0,95 ponto
percentual) e em Piauí (0,03 ponto percentual).
“Se a fome é devastadora no cotidiano, imagine dentro de um
cenário de tragédia”, enfatizou o presidente do G10 Favelas.
Aldenice perdeu quase tudo na enchente, e lama invadiu armário REPRODUÇÃO/ G10
FAVELAS PERNAMBUCO
Em Pernambuco, a pobreza se agravou mais com as
chuvas que castigaram a região. Aldenice é moradora da comunidade Areal e teve
de sair de casa e ir para o interior do estado ficar com a mãe após a enchente.
De barco, o marido dela resgatou moradores porque
nem os bombeiros chegaram à comunidade, que fica à beira do rio Capibaribe.
"Minha diabetes está em 530. Minhas coisas
molharam tudo. Essa enchente acabou comigo. Estou sem vasilha pra cozinhar. As
cadeiras, a água levou. Ganhei fogão porque o outro ficou boiando. Eu não tenho
condições de comprar outro sofá. Já é a segunda enchente, mas como essa não
teve não", conta a moradora.
Para o coordenador do G10 Favelas em Pernambuco e
presidente do Instituto Casa Amarela Social, Fausto Filho, "a tragédia só
veio para escancarar e potencializar a miséria que já estávamos vivendo. Junto
a isso, vieram as perdas e as mortes".
A estimativa dele é que 80 mil famílias tenham sido
afetadas e cerca de 40% desse total ainda esteja tentando reconstruir a vida.
"Faz uma semana que não recebemos doações.
Acaba a comoção. As empresas aqui não estão abertas a doação, como em São
Paulo. Precisamos de cesta básica mas também de móveis. A população que mora
perto de rios, córregos e encostas é a que mais sofre por causa das chuvas",
relata o coordenador.
Fila para entrega de kits aos moradores REPRODUÇÃO / G10 FAVELAS PERNAMBUCO
A entrega dos kits com alimentos, roupas e produtos
de higiene é feita sem grande alarde porque não há itens suficientes para todos
e já houve até registro de briga. À noite, são entregues as senhas para a
retirada.
"O pessoal do Alto Santa Isabel em Casa
Amarela [a sexta maior favela do Brasil] está chateado comigo porque preciso
escolher quem está com mais dificuldade. Chegam as doações, e eles não entendem
por que não entrego para os moradores daqui. Vem gente vítima das chuvas e vêm
os que perderam renda na pandemia", afirma Fausto Filho.
Apesar do cenário adverso, o coordenador do G10
Favelas acredita que a solução para o enfrentamento da pobreza está dentro das
comunidades.
"As favelas movimentam mais de R$ 7 bilhões e
são dados que a população não sabe. Vamos potencializar isso. Não é passe de
mágica, vamos criar negócios. Se vende um bolo gostoso, vamos pensar em
um negócio. Se tem dinheiro nas favelas, vamos prosperar. A solução não vai vir
de fora para dentro", finaliza.
Por: R7