Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2016.
Em situações específicas Vaticano poderá ordenar padre casados. (Foto: Reprodução Unisinos)
Nos relatos de um teólogo alemão e de um bispo brasileiro, o plano de
Francisco deve autorizar exceções locais para a norma do celibato clerical,
começando pela Amazônia.
Uma troca de correspondências, uma conversa e uma inovação já tornada
lei confirmam as intenções do Papa Francisco em estender a presença do clero
casado na Igreja Católica, conforme já antecipado no artigo intitulado “The
Next Synod Is Already in the Works. On Married Priests”.
A troca de correspondências se deu a partir da iniciativa de um teólogo
do alto escalão alemão, Wunibald Müller, 65, quem, em dezembro de 2013,
escreveu uma carta aberta ao papa publicada com destaque no sítio eletrônico
oficial da Conferência Episcopal Alemã sob o título “Pope Francis, open
the door”, literalmente: “Papa Francisco, abra a porta”, pedindo-lhe que
destituísse a estreiteza do celibato aos sacerdotes.
Müller não é um teólogo qualquer. É um psicólogo e escritor prolífico.
Fundou e dirige o “Recollectio-Haus” na abadia beneditina de Münsterschwarzach,
na Diocese de Würzburg, destinado ao acompanhamento de padres e religiosos em
crise existencial, financiado por outras sete dioceses (Augsburg, Freiburg,
Limburg, Mainz, Munique-Freising, Paderborn, Ratisbona-Stuttgart) com a ajuda
espiritual do beneditino mais amplamente lido não só na Alemanha mas no
mundo:Anselm Grün.
A posição de Müller está bem representada pelos títulos de sua
dissertação de graduação e tese doutoral: “O sacerdote como guia espiritual das
pessoas homossexuais” e “A homossexualidade: Um desafio para a teologia e o
cuidado das almas”.
Ao não receber uma resposta à sua primeira missiva, em abril de 2014,
Müller decidiu escrever uma segunda carta a Jorge Mario Bergoglio. E,
quase vinte meses depois, o papa finalmente lhe respondeu.
Em 25 de novembro passado, a Katholische Nachrichten-Agentur, agência
noticiosa dos bispos alemães, publicou uma reportagem sobre a correspondência e
os sinais de “abertura” por parte do papa. E, em 4 de janeiro, o
jornalSüddeutsche Zeitung entrevistou Müller perguntando-lhe mais detalhes:
O senhor escreveu uma carta ao Papa Francisco?
Pedi por um abrandamento do celibato. Deveria haver sacerdotes casados
bem como celibatários, homossexuais assim como heterossexuais.
E a resposta?
Francisco agradeceu por minhas reflexões, o que me deixou muito feliz.
Ele diz que as minhas propostas não podem ser realizadas para a Igreja
universal, mas acho que isso não exclui soluções no nível regional. Francisco
pediu ao bispo brasileiro Erwin Kräutler que descubra em sua diocese se existem
homens casados, de experiência comprovada, que poderiam ser ordenados ao
sacerdócio. O papa está à procura de lugares onde alguma coisa pode ser mudada
e que, então, poderá se desenvolver numa dinâmica própria.
Erwin Kräutler, o prelado que está se aposentando por motivos de idade
da imensa prelazia amazônica do Xingu, mas que ainda está bastante ativo como
secretário da comissão episcopal para a Amazônia, é exatamente o bispo
brasileiro que, poucos dias antes do Natal, havia tido uma outra conversa com o
papa sobre a possibilidade do recurso a um clero casado em territórios
drasticamente desprovidos do clero celibatário.
A Rádio Vaticano cobriu a notícia do diálogo entre ele e o papa em uma
entrevista com Kräutler em 22 de dezembro:
O que o papa diz sobre comunidades sem um padre para celebrar a
Eucaristia?
Ele me disse que devemos fazer propostas concretas. Propostas ousadas,
corajosas. Ele disse que devemos ter a coragem de falar. Ele próprio não irá
tomar a iniciativa, mas se basear na escuta do povo. Ele quer a criação de um
consenso e o início das tentativas em algumas poucas regiões, visando tornar
possível que as pessoas celebrem a Eucaristia. Se lermos a exortação apostólica
Dies Domini, de João Paulo II, veremos claramente que não existe comunidade
cristã se não há encontro em volta do altar. Segundo a vontade de Deus, então,
devemos abrir caminhos para que isso possa acontecer. No Brasil, uma comissão
já está trabalhando na elaboração destes caminhos.
Nesse sentido, o que deveríamos esperar do pontificado de Francisco?
Um ponto de inflexão. Mais ainda: nós já estamos em um ponto de
inflexão. Eu acredito que já chegamos a um ponto sem volta. Mesmo o próximo
papa ou o outro depois dele não terá condições de voltar atrás em relação ao
queFrancisco está fazendo hoje.
Em um artigo de 12 de julho de 2015 na revista italiana “Credere”,
Kräutler confirmava que “o papa pediu à comissão para a Amazônia que trouxesse
propostas concretas até o mês de abril”, e desde então “nós estamos pensando
algumas formas para que todas as comunidades tenham a possibilidade de
participar da Eucaristia mais de três vezes por ano”.
Entre essas “formas” está precisamente a ordenação de homens casados, a
fim de compensar o fato de que – confirme disse Kräutler –“temos somente 30
sacerdotes para 800 comunidades, e a região é realmente muito extensa”.
Deve-se dizer, no entanto, que a carência de vocações à vida sacerdotal
no Brasil pode se dever também ao terrível exemplo que parte do clero local
está dando, caso existir alguma verdade na representação feita tempos atrás por
uma revista católica como sendo um clero autoritário e irrepreensível como o
“Il Regno”:
“Os fiéis não têm alternativa senão se reunir na igreja para celebrar
uma espécie de missa sem a presença de um sacerdote, mesmo nas cidades onde não
há falta de padres. No domingo, eles poderiam se dividir nas várias igrejas,
mas, em vez disso, preferem concelebrar entre si mesmos e deixar os fiéis à
mercê de fanáticos desenfreados, onde os fanáticos não são os próprios
celebrantes, os quais às vezes modificam os textos litúrgicos a seu bel prazer
porque não são sequer capazes de compreendê-los, transformam o canto do Sanctus
em um ritmo de dança, não festejam o papa, o bispo, não celebram os falecidos.
São sacerdotes tão ineptos que, normalmente aos domingos, como os barbeiros na
Itália, tiram um dia de descanso e não celebram a missa, nem mesmo nas
catedrais. Ou não visitam os enfermos, não trazem o viático, não celebram
funerais. E nem sempre podem se justificar trazendo a desculpa da escassez de
seus pares”.
Um outro fator – de forma alguma secundário – na marcha em direção à
ordenação dos “viri probati” na Igreja latina é a autorização dada a sacerdotes
casados das igrejas católicas orientais a operar mesmo do lado de fora de seus
territórios tradicionais. Ou seja, não somente no Oriente Médio e na Europa
oriental, mas em todo o mundo.
A autorização foi dada pelo Papa Francisco, através da congregação
vaticana para as igrejas orientais, presidida pelo cardeal argentino Leonardo
Sandri, em 14 de junho de 2014. Ela eliminou um século e meio de proibições
intransigentes.
Principalmente nas Américas e na Europa oriental, os hierarcas católicos
latinos sustentaram que a presença de sacerdotes casados do rito oriental em
seus territórios, chegando na esteira das migrações, traria um “gravissimum
scandalum” aos fiéis.
O Papa Francisco permitiu uma tal presença em certas condições. E citou
a seu favor a constituição apostólica de 2009 “Anglicanorum Coetibus”, com a
qual Bento XVI admitiu a presença de sacerdotes casados que anteriormente eram
anglicanos nas regiões ainda sob a proibição de padres do rito oriental
casados.
Uma última observação: a ordenação de homens casados ao sacerdócio, “em
casos particulares e pelas necessidades pastorais”, já foi analisada por um
Sínodo dos Bispos; foi o de 1971 dedicado ao “ministério sacerdotal e à justiça
no mundo”.
A proposta foi colocada em votação diante de uma outra, que manteria o
celibato em vigor para todo o clero latino, sem exceções.
E a segunda venceu, por 107 votos contra 87.
Desde então, 45 anos se passaram e, evidentemente, o Papa Francisco
acredita que este momento é propício para se reexaminar a questão e marcar uma
abertura ao clero casado, começando com umas poucas regiões da América
Latinaparticularmente afetadas pela escassez de padres.
Sem drama. Porque esta – diz ele – “é uma questão de disciplina, e não
de fé”.
Unisinos