Sábado, 26 de Março de 2016.
Ianka Mikaelle fez 18 anos dois dias depois que
Sofia chegou ao mundo, no fim de janeiro. O diagnóstico de microcefalia veio
aos sete meses de gravidez. E logo depois do primeiro golpe, Ianka recebeu o
segundo: seu namorado, pai de seu primeiro filho, a abandonou.
“Ele disse que estava com nojo de mim, que me desprezava. Aí me deixou”, conta Ianka com Sofia no colo, embrulhada numa mantinha branca com a palavra “princesa” bordada em cor de rosa.
“Ele disse que estava com nojo de mim, que me desprezava. Aí me deixou”, conta Ianka com Sofia no colo, embrulhada numa mantinha branca com a palavra “princesa” bordada em cor de rosa.
Casos como o da jovem se somam no ambulatório
especializado em microcefalia do Hospital Municipal Pedro I, em Campina Grande,
na Paraíba.
A unidade, montada às pressas em novembro do ano
passado para responder ao repentino aumento de casos de microcefalia no
Nordeste, vêm recebendo dezenas de bebês do interior do Estado para sessões de
fisioterapia e acompanhamento médico, mas também para terapia individual ou em
grupo para as mães.
Os dramas enfrentados pelas mulheres atendidas aqui
se sobrepõem. Pobreza, gravidez precoce, abandono pelos parceiros — são
problemas corriqueiros.
Jaqueline Loureiro, psicóloga da unidade, diz que
todas as mulheres aqui têm padrões socioeconômicos baixos e muitas vivem apenas
do Bolsa Família.
Diversas foram de fato abandonadas pelos parceiros,
como Ianka; mas Jaqueline diz que há muitos outros casos de abandono velado. Os
maridos ficam, mas não se fazem presentes. Ela calcula que apenas 10% das
mulheres atendidas pelo ambulatório de fato recebem o apoio necessário dos
maridos.
‘Não tem mais mulher nesta casa?’
Segundo Jaqueline, “muitas delas não recebem
suporte nem financeiro, nem emocional [dos parceiros]. Porém, não se veem como
tendo sido deixadas por não ter sido um abandono oficializado”.
— As mulheres têm que tomar a frente de tudo
sozinhas. E a gente sabe que essa história está apenas começando.
O Nordeste, afirma ela, é uma região
“predominantemente machista”, e isso se reflete nos relatos que as
profissionais ouvem no ambulatório. A fisioterapeuta Jeime Leal diz que os
maridos esperam que as mulheres continuem cuidando da casa.
— ‘Por que você não fez a janta? Não tem mais
mulher nesta casa?’ Elas têm que ouvir cobranças como essas, além de todo o
cuidado que precisam ter com a criança. São crianças que choram muito e
requerem muitos cuidados. Às vezes elas passam noites e noites sem dormir.
Sem chance de trabalhar
Ianka largou a escola aos 15 anos, quando
engravidou do primeiro filho. Pensava em voltar a estudar e estava procurando
emprego quando engravidou de Sofia. Ela mora com os pais em Campina Grande a
não tem e menor perspectiva de sair de casa.
“Lá em casa são nove pessoas, contando meus dois
filhos. Só meu pai trabalha, ele é pedreiro. É um pouco difícil por causa
disso. Eu durmo na cama dos meus pais com meu filho, a Sofia no berço, e meu
pai e minha mãe dormem no chão. Eles cederam a cama para a gente”, diz sorrindo
com um misto de vergonha e gratidão.
Na prática, muita da responsabilidade recai sobre a
mãe de Ianka, Edivânia Barbosa de Lima, que a acompanha sempre ao hospital e é
como se fosse uma mãe também para a neta.
— Ianka é muito dependente de mim. Como o rapaz não
quis mais viver com ela, ela vive comigo e eu faço tudo por ela. Na hora de
trocar o bebê, ela fala, ó, mãe, toma. Eu troco, com o maior amor. Não me
queixo.
A maternidade precoce está na família. Edivânia
também engravidou pela primeira vez aos 15 anos, e hoje, aos 36 anos, tem cinco
filhos e os dois netos.
— Quando a Sofia nasceu, eu levei um choque muito
grande quando a vi. Mas agora todo mundo lá em casa é louco por ela. No começo
eu sofri muito pela situação, pelo probleminha dela. Mas acho que Deus só dá
para você o que você pode cuidar. Vou fazer tudo que puder pela minha neta.
Demora no salário-benefício
A sala de espera do ambulatório no Pedro I se
assemelha a uma sessão de terapia coletiva. Na tarde de uma quinta-feira, as
mães conversavam animadamente, falavam de seus bebês, de suas famílias, de suas
experiências. Há pausas pensativas, mas também gargalhadas.
Essa rotina se repete duas vezes por semana e, a
essa altura, as mães parecem velhas amigas. Muitas levam horas para chegar de
cidades vizinhas, buscadas de madrugada pela condução que vem sendo oferecida
pela prefeitura.
Francileide Ferreira vem de Galante, município a
cerca de meia hora de Campina Grande. Ela tem 30 anos e Rafael, de três meses,
é seu quinto filho.
Somado, o dinheiro que recebe do Bolsa Família — R$
200 por mês — e os bicos que o marido arranja não têm dado para comprar o leite
em pó do Rafael, além de fraldas e pomadas. Ela tem pedido ajuda para as outras
mães, as médicas e familiares.
“Dá vergonha, mas tem momento que a gente tem que
se humilhar mesmo”, diz com um sorriso sem graça.
Francileide deu entrada no início do ano no pedido
para receber o Benefício de Proteção Continuada, programa do governo que paga
um salário mínimo a famílias de pessoas com deficiência que tenham renda mensal
de até R$ 220.
O benefício é operado pelo INSS, e o trâmite
demanda uma perícia tanto para comprovar a deficiência no bebê quanto para
aferir o baixo padrão de renda.
Francileide só conseguiu agendar a visita da
perícia para março, e enquanto isso continua dependendo da caridade dos outros.
A história se repete entre as outras mães no ambulatório — a demora para
conseguir o benefício faz com que muitas ainda não tenham se animado a tentar,
como é o caso de Ianka.
‘
Quando Deus dá, não tem problema não’
Francileide nos permite acompanhá-la até a sua
casa, uma construção simples e inacabada numa rua de paralelepípedo em Galante;
mas busca evitar a atenção dos vizinhos ao entrar em casa com uma equipe de
reportagem.
A primeira coisa que faz é pedir para a filha mais
velha, de 13 anos, preparar a mamadeira do Rafael — que parou de aceitar logo
cedo o peito da mãe por dificuldade de sugar.
Enquanto coloca o filho na
banheira para tentar refrescar seu corpo franzino depois do trajeto quente na
traseira de uma ambulância.
Ela veste o filho com um macaquinho branco com o
desenho de um cachorro e uma meia esgarçada que fica caindo do seu pé — até que
Francileide a prende com um elástico ao redor de seu tornozelo. A meia puída
decerto passou por seus outros filhos; é estampada de micro-ônibus e caminhões,
com a palavra “HERO” (herói) escrita em inglês.
O mosquiteiro sobre a cama de Francileide não foi
suficiente para evitar as manchas vermelhas e dor nas juntas que apareceram no
início da gravidez, com febre e dor de cabeça. Meses depois, ela soube que o
filho tinha microcefalia e estava com “líquido na cabeça”.
“Achei estranho. Porque nunca tive filho assim, com
problema. Aí o quinto ser assim. Nunca pensei em ter um filho assim”, conta,
ninando o filho no colo, remédio certeiro contra o berreiro que acabara de abrir.
Francileide costumava trabalhar em lavouras na
região. “Cultivava milho, feijão. Eu gostava. Mas agora não vou mais poder
trabalhar”, diz ela, resignada.
“É mais trabalhoso, criança com deficiência. Mas
Deus quis assim, e quando Deus dá, não tem problema não. Vou cuidar dele como
cuidei dos outros”, diz ela, com a Bíblia a seu
lado no sofá.
Fase de negação
Mas a fé das mães e a confiança no futuro das
crianças às vezes deixa as profissionais no Hospital Pedro I com o coração na
mão.
“Muitas delas ainda estão em negação”, afirma a
psicóloga Jaqueline Loureiro.
— Os bebês têm comportamento similar a qualquer
outra criança nessa fase de desenvolvimento. As dificuldades que essas crianças
vão ter ainda não estão tão perceptíveis.
“A maioria imagina que é só o tamanho da cabeça.
Falam que quando o cabelo começar a crescer, vai cobrir a cabeça, e ninguém vai
perceber”, conta a fisioterapeuta Jeime Leal, acrescentando que muitas dizem
não ver a hora de as crianças estarem correndo pelo corredor.
— Elas nem sempre têm noção de que esse tamanho vai
fazer com que o cérebro não se desenvolva e a criança não alcance os objetivos
que deveriam ser alcançados.
Não lhes cabe desconstruir essa esperança, afirmam elas — e sim procurar dar suporte para as mães ao longo de todas as fases do caminho.
Não lhes cabe desconstruir essa esperança, afirmam elas — e sim procurar dar suporte para as mães ao longo de todas as fases do caminho.
Da Redação
Com Portal do Litoral