Quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Matéria da Agência Brasil
Ao ouvir experiências de outras pessoas, Bernardino Freitas, de
60 anos, descobriu que não estava sozinho. Nem havia motivo para se
envergonhar. O homem, nascido em Miracema do Norte (TO) e que vive há sete anos
em Brasília (DF), queria mesmo que a lembrança do copo com aguardente ficasse
no passado. “Fui procurar ajuda no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) quando
tinha passado do limite”.
Ele percebeu o “limite”
quando se viu de manhã até a noite nas mesas de bares e sentindo a saúde se
deteriorar. Somaram-se aí os sentimentos da esposa e dos filhos. O aposentado
procurou ajuda de profissionais de saúde e está há dois anos longe do vício. A
vida sem álcool ganhou outro sabor.
“Hoje eu me sinto muito
melhor”, afirma Bernardino. Nesta quinta (20), Dia Nacional de Combate às
Drogas e ao Alcoolismo, ele tem na rotina a participação em grupo terapêutico,
em que se identifica com outras histórias. “Os profissionais de saúde do Caps
fizeram com que eu me envolvesse com o tratamento”.
A bebida, segundo
Bernardino, ganhou importância quando se viu sem poder trabalhar como
jardineiro, profissão da maior parte da vida. Uma cirurgia na coluna fez com
que se aposentasse aos 45 anos. “Isso me empurrou para o vício. Eu fiz bem em
pedir ajuda”.
Papel
do SUS
No Brasil, o tratamento contra a dependência em álcool é especializado,
gratuito e universal (nas unidades básicas e nos Caps). Questionado pela
Agência Brasil, o Ministério da Saúde informou que os cuidados para pacientes
com alcoolismo e outras drogas no Sistema Único de Saúde (SUS) são realizados
pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que totalizam 6.397 unidades em todo
o país, entre elas 3.019 centros de Atenção Psicossocial (Caps).
“Essa estrutura faz do
Brasil um dos países com a maior rede de saúde mental do mundo”, acrescentou o
ministério. Os serviços incluem intervenções psicossociais para cada caso, que
podem ser realizadas de forma individual ou coletiva, o que inclui o
acolhimento da família.
O ministério disse que os
Caps têm acesso livre, não precisam de agendamento prévio para realizar o
primeiro atendimento e têm equipes multiprofissionais. Essas unidades atendem
pessoas de todas as faixas etárias. Existem unidades com essa característica
que funcionam 24 horas e contam com camas para acolhimento noturno dessas
pessoas por até 15 dias no mês.
Serviço
é gratuito, mas tem desafios
Além de a rede de serviços ser gratuita e do acesso a toda a população, o que é
fundamental para combater o problema do alcoolismo, há desafios no dia a dia
dessa política pública, afirma a socióloga Mariana Thibes. Ela, que é
coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), organização
da sociedade civil de interesse público e referência em pesquisas sobre o tema,
entende, porém, que “muitos desafios” permanecem nos trabalhos de prevenção às
doenças causadas pelo etilismo.
Para a pesquisadora,
seriam importantes, nessa luta dos profissionais de saúde, maior qualificação
para identificação precoce do problema nas abordagens de rotina, ampliação da
disponibilidade de tratamento medicamentoso especializado na maioria dos
municípios e aumento do número de profissionais de saúde especializados, como
psiquiatras e psicólogos nos Caps-AD (tratamento contra a dependência em álcool
e drogas).
“Além disso, podemos
destacar as barreiras de acesso por conta do estigma que a doença ainda tem, o
que retarda a busca por ajuda”, alertou Mariana em entrevista à Agência Brasil.
Ela entende que, dessa forma, embora o Brasil tenha avançado nos principais
pilares do combate ao alcoolismo nas últimas décadas, ainda resta muito a ser
feito.
Efeitos
da pandemia
A pandemia de covid-19 (que, como medida sanitária, fez com que as pessoas
precisassem se isolar em casa) representou um desafio para quem sofre com o
alcoolismo. “Muitas pessoas passaram a beber mais para enfrentar as
dificuldades do momento”, lembra a socióloga.
Ela explica que pacientes
ficaram sem tratamento por causa da superlotação dos serviços de saúde em vista
das prioridades com a pandemia. “Houve aumento no número de mortes por
alcoolismo, não só no Brasil, mas no mundo. Alguns estudos vêm mostrando que
esses problemas ainda não foram totalmente revertidos. Esforços em políticas
públicas precisarão ser feitos para isso acontecer”.
Racismo
e machismo
Um dos dados que a pesquisadora cita é que 72% das mulheres vítimas de
transtornos causados por dependência ao álcool são negras. Mariana Thibes
explica que esse número não está relacionado ao maior consumo abusivo por essa
população. São mais vítimas porque há desigualdade no acesso a serviços de
saúde de qualidade.
“Muitas pessoas negras
residem em áreas com infraestrutura deficiente, escassez de recursos médicos e
falta de profissionais capacitados, o que limita o acesso a cuidados de saúde
adequados”, afirmou.
Outro elemento trazido
pela coordenadora do Cisa é que a discriminação racial no sistema de saúde pode
resultar em diagnósticos tardios, tratamentos inadequados e menor qualidade no
atendimento, prejudicando a saúde da população negra.
“O estresse crônico,
decorrente da discriminação racial, pode acarretar problemas de saúde mental,
como ansiedade, depressão, traumas psicológicos e abuso de substâncias, incluindo
o álcool”. Além disso, no caso das mulheres, os impactos são maiores porque
convivem com a discriminação de gênero.
Publicidade
abusiva
A legislação brasileira (Lei 9.294), hoje, impõe restrições à publicidade de
bebidas alcoólicas. Entre as limitações, estão a permissão de propaganda apenas
entre as 21h e as 6h, e a obrigatoriedade de advertências sobre os malefícios e
riscos do consumo. No entanto, conforme explica Mariana Thibes, os canais de
influenciadores e as redes sociais no Brasil não são regulamentados.
O alerta da pesquisadora é
comprovado por pesquisa de 2021 feita pela publicação especializada Journal of
Studies on Alcohol and Drugs (dos EUA), que mostrou que 98% das publicações
sobre álcool no Tik Tok retratavam a substância de forma positiva.
Sinais
e sintomas
A psiquiatra Olivia Pozzolo avalia que a prevenção das doenças relacionadas ao
consumo de álcool é papel do Estado, mas as famílias também podem desempenhar
apoio fundamental. “As famílias são essenciais, tanto na identificação precoce
de um comportamento de risco, no suporte emocional, quanto no encorajamento à
busca de tratamento adequado e na manutenção também do tratamento”, afirma a
especialista, que também é pesquisadora do Cisa.
Ela explica que a
dependência do álcool pode ser reconhecida por sinais e sintomas
característicos, como a incapacidade de reduzir ou controlar o consumo, o uso
contínuo, apesar de ter consequências negativas na vida de alguém, e o aumento
da tolerância.
“Algumas formas de
auxiliar são oferecer um ambiente de escuta sem julgamento, encorajar a pessoa
a buscar tratamento especializado, participar de grupos de apoio para a
família, onde é possível compartilhar experiências e estratégias e evitar
situações que podem incentivar o consumo de álcool”. A recuperação é, segundo
avalia, um processo contínuo e o suporte pode fazer diferença para quem
enfrenta essa condição.
Alcoólicos
anônimos
Além do suporte do Estado e da família, um serviço consolidado no Brasil (e
também no mundo) partiu da sociedade organizada, a Irmandade de Alcoólicos
Anônimos. Em 2025, essa iniciativa completa 90 anos de história e está presente
em 180 países. No Brasil, há atualmente 3.802 grupos que realizam 8.665
reuniões todas as semanas. Ao todo, 93 grupos realizam 449 reuniões a distância.
Segundo a presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do
Brasil (Junaab), Lívia Pires Guimarães, para que a pessoa possa ingressar na
atividade o único requisito é o desejo de parar de beber.
“Apenas isso. Havendo esse
desejo, ela já está apta para ser membro. Não há restrição de idade ou de
gênero, classe social e nenhuma outra questão complementar”, afirmou. Ela
explica que a irmandade tem característica comunitária. Todo o serviço de AA é
feito por alcoólicos que fazem parte do programa de recuperação. “Tudo
sugerido, nada é imposto. Aqueles que querem, que se identificam, se
voluntariam para poder servir. Não há profissionais contratados na Irmandade de
Alcoólicos Anônimos”.
No AA, há pessoas não
alcoólicas na estrutura de serviços administrativos. “A irmandade não é
secreta, mas guarda o anonimato dos seus membros”. Ela afirma que se trata de
um programa que transcende o tratamento do alcoolismo. “Uma vez ingressando na
Irmandade, a pessoa não será diagnosticada ou rotulada”. O serviço pode ser
acessado pela internet e linhas de whatsapp.
Uma pessoa que vive no Rio
de Janeiro, identificada nesta reportagem como Ana, recorda que começou a
consumir álcool aos 12 anos de idade. “Eu lidava frequentemente com apagões,
comportamentos desmoralizantes, por vezes agressivos. A minha interação com o
álcool me levou realmente ao fundo do poço”, recorda.
Ana* lembra ainda que, aos
17 anos, a relação dela com o álcool passou a ser intensa e crônica. “Aos 18
anos, comecei a depender de estimulantes na tentativa de passar no vestibular,
o que se transformou num ciclo de estudos e uso abusivo de substâncias”.
Na faculdade, as pessoas
não consumiam álcool. Assim, aos 19 anos, ingressou no AA. “Salvou minha vida.
Consegui me graduar e conheci meu marido na irmandade. Celebramos um casamento
lindo, sem envolvimento do álcool”. O casal faz projetos de longo prazo e vive
um dia de cada vez, com a consciência de evitar o primeiro gole.
Um homem, também
integrante do AA e carioca, diz que tem consciência de que a regularidade nas
reuniões fez com que experimentasse nova vida. “Esse espaço é fundamental para
a minha permanência sem beber e para a minha vida continuar funcionando como
funciona hoje. Eu ter restituído emprego, família, saúde, sanidade, propósitos
objetivos, sonhos, enfim, tudo me foi devolvido”.
Por: *Informações
da Agência Brasil