Segunda-feira, 19 de maio-(05) de 2025
Trajetória de alta ficou mais clara a partir de dezembro de
2024, segundo dados do Banco Central (BC)
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Metade dos adultos
do Brasil estão inadimplentes, segundo Serasa (David Sacks/Thinkstock) |
A parcela do
orçamento das famílias brasileiras comprometida com o pagamento de dívidas
voltou a aumentar e já está em nível similar ao período do lançamento do
programa Desenrola, criado pelo governo Lula em 2023 para estimular a
renegociação de débitos e reduzir o elevado endividamento dos brasileiros.
A trajetória
de alta ficou mais clara a partir de dezembro de 2024. Em fevereiro deste ano,
último dado disponível, 27,2% da renda das famílias foi destinada ao pagamento
de dívidas, segundo informações do Banco Central (BC). É o maior nível desde
julho de 2023 (27,3%), quando foi lançada a primeira fase do Desenrola.
Sobra
menos
Comprometimento
da renda das famílias com dívidas voltou a subir e está no maior nível desde
meados de 2023.
Segundo economistas, a piora decorre principalmente do
crescimento da concessão de empréstimos no segundo semestre de 2024 e do
aumento da taxa básica de juros (Selic), que, em 12 meses, foi de 10,5% a
14,75% ao ano, um recorde em quase duas décadas. A desaceleração econômica
esperada com alta dos juros também deve afetar o quadro.
Em um período de aperto monetário e endividamento em alta, os
bancos tendem a restringir a oferta de empréstimos, e o que sobra para as
famílias em dificuldades é recorrer a modalidades com juros mais altos, como o
cheque especial, o rotativo do cartão e o crédito pessoal. Ou seja, a tendência
é de aumento da contratação de dívidas mais caras, comprometendo fatia ainda
maior do orçamento nos lares.
Inflação complica
A
escalada dos juros reflete o esforço do BC para frear a inflação, outro fator
que estrangula contas domiciliares. Mesmo com a desaceleração em abril, o IPCA
acumulado em 12 meses ficou em 5,53%, acima da margem de tolerância (1,5 ponto
percentual) da meta anual de 3%.
Entre
os principais vilões estão alimentos e serviços como transporte, que afetam
mais o bolso das famílias mais vulneráveis ao endividamento. Com parte do
orçamento consumido por dívidas e gastos fixos, muitos responsáveis por
domicílios são levados a novos empréstimos.
Viúva,
a aposentada Maria Regina Cordeiro, de 72 anos, vive em São João de Meriti, na
Baixada Fluminense, com uma filha que trabalha como autônoma e tem dificuldades
de ajudar nas despesas sem uma fonte fixa de renda.
Na
prática, a aposentadoria e a pensão do marido — que somam pouco mais de R$ 3
mil — têm de dar conta de todas as contas da casa. Ela faz algum ganho extra
com um pequeno comércio de bairro porque praticamente toda a sua renda fixa
está comprometida com contas mensais e prestações de empréstimos: R$ 2.800.
—
Está tudo caro demais. Gás, água e alimentação. Tenho de bancar tudo sozinha.
Tento me organizar, mas nem sempre consigo. Meus dois salários mínimos vão
praticamente todos para pagar dívida — diz Maria Regina, que se queixa também
da alta do preço do café na padaria do bairro.
A lista de compromissos mensais dela é extensa. Ela destaca
internet, contribuições previdenciárias da filha autônoma, um título de
capitalização, seguros de cartão de crédito, alimentação, IPTU e gás de
cozinha. Mas a principal preocupação da aposentada é escapar do cheque
especial, cujos juros giram em torno de 130% ao ano, em média.
— Costumo sacar o dinheiro quando recebo, tenho a impressão de
que tenho mais controle. Antes de chegar ao fim do mês, tento não usar o cartão
de débito para evitar o cheque especial. Quando entro no especial, peço minha
filha para fazer um Pix para sair dessa situação, mas nem sempre conseguimos —
conta.
‘Aperta daqui, cobre dali’
Em
Piedade, na Zona Norte do Rio, a copeira hospitalar Alexandra Gonçalves, de 49
anos, viu a parcela da renda familiar comprometida com dívidas engordar nos
últimos meses. Ela divide o lar com o filho Alan, de 27 anos, gerente de uma
pizzaria, e a neta Zoe, de 4, que tem autismo e recebe o Benefício de Prestação
Continuada (BPC).
A
renda familiar gira em torno de R$ 5.700. Em outubro do ano passado, Alexandra
fez um empréstimo consignado vinculado ao benefício da neta, de R$ 14 mil, para
arcar com despesas médicas. Desde então, parcelas descontadas e gastos fixos da
família dão a impressão de que sobra pouco para consumo.
—
Hoje, quase R$ 3 mil vão só para pagar aluguel, alimentação, cartão de crédito,
empréstimo consignado e cuidados com minha neta, que tem plano de saúde e
precisa de assistência contínua. Tem mês que a gente aperta daqui para cobrir
dali — diz Alexandra.
Desenrola foi bem-sucedido, mas alívio parece ter ficado para
trás
Segundo o economista Caio Napoleão, da consultoria MCM
4intelligence, o Desenrola foi bem-sucedido no plano de reduzir o
comprometimento de renda da população. De julho de 2023 a fevereiro de 2025, o
percentual mais baixo foi o de maio de 2024 (25,8%), justamente o último mês de
vigência do programa federal.
O Desenrola incentivou a renegociação de dívidas contraídas até
2022 em bancos e outros setores, como varejistas e serviços públicos, mas o
alívio nas famílias parece já ter sumido com novas dívidas e juros mais altos.
Desde maio de 2024, diz Napoleão, cerca de 70% do crescimento do
comprometimento de renda é explicado pela amortização do montante principal das
dívidas, principalmente por conta do aumento do crédito pessoal, do uso de
cartões e do financiamento de veículos.
O restante da piora está relacionado ao pagamento de juros,
natural diante do aumento da Selic. Mas a renda, outro componente da equação,
ajudou: cresceu 9,5% entre maio de 2024 e fevereiro deste ano.
— A renda cresceu bem, mas as famílias tomaram crédito com ainda
mais ímpeto enquanto o BC começou a subir juros — frisa Napoleão.
Crédito do Trabalhador
A
expectativa do governo e de parte do mercado é de que a situação melhore com a
migração de dívidas viabilizada pelo recém-lançado Crédito do Trabalhador, que
ampliou o acesso ao consignado a todos os empregados com carteira assinada do
país, mais de 40 milhões de pessoas. Mas isso depende de o novo modelo ser
usado principalmente para renegociar dívidas mais caras.
Com
o desconto das parcelas na folha de pagamentos, o consignado tem juros menores
e prazos maiores porque o risco de inadimplência para os bancos é mais baixo.
Antes dessa reformulação, a modalidade para trabalhadores do setor privado era
restrita aos de grandes empresas, que faziam acordos com bancos. Agora uma
plataforma dá acesso a todos os empregados formais.
Em pouco mais de um mês de operação, já foram concedidos R$
10,1 bilhões em empréstimos consignados para 1,8 milhão de
trabalhadores nessa nova modalidade, segundo o Ministério do Trabalho.
Deste montante, R$ 2 bilhões são referentes à migração de dívidas antigas, mais
caras, como o crédito pessoal.
Na avaliação da economista Isabela Tavares, da Tendências
Consultoria, ao contrário do Desenrola, que foi um alívio para famílias com a
“corda no pescoço”, o novo consignado é uma mudança estrutural no mercado de
crédito, com maior acesso da população a empréstimos mais baratos.
— A questão é ir observando o comprometimento de renda, ver se
vai sair muito fora do que é esperado. Há uma perspectiva de diminuição no
segundo semestre devido ao Crédito do Trabalhador. Os volumes de concessão
estão bem expressivos, ultrapassando até o consignado do INSS, que era o mais
forte. Surpreende bastante — diz Tavares.
Além da nova linha de
crédito, a equipe econômica entende que, para combater o alto comprometimento
de renda com dívidas, é necessário aumentar o que chama de cidadania
financeira, considerando a forte inclusão bancária dos últimos anos. Isso
envolve programas de educação financeira, mas também maior proteção ao
consumidor de serviços bancários no Brasil.
Governo quer prevenção
A
avaliação do governo é de que os bancos precisam se envolver mais nesse aspecto
para evitar que as famílias se compliquem e tenham o orçamento consumido por
dívidas. O secretário de Reformas Econômicas da Fazenda, Marcos Pinto, diz que,
em países como EUA e Inglaterra, os bancos são obrigados a avaliar a situação
financeira dos tomadores de crédito e a auxiliá-los a encontrar opções mais
adequadas a seus perfis para evitar o endividamento elevado.
—
No geral, o Brasil precisa ter um foco maior na proteção de consumidores de
produtos financeiros. Já fizemos um trabalho de inclusão financeira e, agora,
precisamos de um trabalho de cidadania financeira. Esse trabalho passa, por um
lado, por educação e informação, mas também por proteção. Os países
desenvolvidos têm isso — diz o secretário.
O
Ministério da Fazenda diz estar trabalhando em uma agenda de reformas para
melhorar o ambiente de negócios e reduzir o custo do crédito no país. Uma das
ideias é reorganizar a regulação financeira, redividindo-a em duas dimensões: a
prudencial, que zela pela solidez de instituições e do sistema, e a de proteção
ao consumidor. Essa reformulação é prioridade da Fazenda neste ano, mas a
proposta ainda não está finalizada.
O
tema também está na agenda estratégica do novo presidente do BC, Gabriel
Galípolo. Regulador do sistema bancário, o BC informou que tem fortalecido
ações para promover a cidadania financeira no país. “A atuação da autarquia se
dá junto à sociedade e junto às instituições financeiras; neste último, por
meio de ações regulatórias e de supervisão de conduta”, diz o BC, em nota.
O texto cita, por exemplo, uma norma de 2021 que requer dos
bancos a adequação dos produtos e serviços ofertados ou recomendados às
necessidades, aos interesses e aos objetivos dos clientes e usuários. Também
menciona a regra que limitou os juros no rotativo do cartão ao valor original
da dívida e o teto de 8% ao mês no cheque especial.
Por: O GLOBO