Segunda-feira, 09 de agosto de 2021
Cientistas já obtiveram resultados
positivos em testes com animais. Autorizações para testes em humanos estão em
andamento
Imagem ilustrativa | Foto: Pixabay
As intervenções cirúrgicas
disponíveis no sistema de saúde brasileiro para tratar lesões no joelho são
invasivas, complexas e nem sempre resolvem o problema. A alternativa é o uso de
células-tronco para a produção de membranas a serem implantadas na articulação.
No Brasil, pesquisas com esse objetivo vêm sendo desenvolvidas por um grupo
liderado por Tiago Lazzaretti Fernandes, cirurgião ortopédico que atua no grupo
de Medicina do Esporte no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (HC-FM-USP).
Os cientistas já obtiveram resultados positivos em testes
pré-clínicos (com animais) utilizando membranas produzidas a partir de
células-tronco mesenquimais – encontradas em tecidos como medula óssea, tecido
adiposo e revestimento da parede articular ou sinóvia. Ao se diferenciar, essas
células podem formar tecidos adiposo (gordura), ósseo e cartilaginoso.
“Em mais de 15 anos de pesquisa há raríssimas descrições de
formação tumoral, algo que é apontado em estudos relacionados a certos tipos de
célula-tronco como efeito adverso grave. São bastante seguras e muito
utilizadas”, destaca Tiago Fernandes, coautor de um artigo
de revisão sobre o tema publicado na Frontiers in Immunology.
No estudo, os pesquisadores analisaram a eficácia de membranas
produzidas a partir de duas fontes de células-tronco mesenquimais. Uma delas é
a membrana sinovial, uma fina camada de tecido que reveste a parte mais interna
das articulações. Esse tecido é responsável por produzir o líquido sinovial,
cujo papel é fazer a lubrificação, evitando que as articulações sofram
desgaste.
Outra fonte de células-tronco utilizada foi a polpa dentária,
graças a uma parceria com Daniela Franco Bueno, do Instituto Sírio-Libanês de
Ensino e Pesquisa. Ela estuda essa metodologia para o tratamento de lábio
leporino, malformação que afeta a região dos lábios e palato. O grupo de
pesquisa também conta com Arnaldo Jose Hernandez, da FM-USP.
Segundo Tiago Fernandes, o uso das células-tronco mesenquimais é
mais vantajoso em comparação a outras. “As células-tronco embrionárias envolvem
uma série de conflitos éticos e religiosos que dificultariam a pesquisa”, diz.
“Poderíamos usar também as células-tronco pluripotentes induzidas, técnica que
permite, a partir de uma célula adulta, produzir células semelhantes às
embrionárias, mas as pesquisas indicam um risco maior de tumores e precisamos
de mais estudos para esclarecer esse ponto”, pondera. Já as células
mesenquimais têm a vantagem de se diferenciar em cartilagem, justamente o
tecido alvo da pesquisa.
Alternativas mais efetivas
Três diferentes técnicas cirúrgicas estão entre as alternativas
hoje disponíveis para tratar lesões da cartilagem do joelho, estrutura que
recobre o osso internamente nas articulações. Esse tecido fibrocartilaginoso
tem espessura de três a quatro milímetros e a função de diminuir a fricção e
absorver o impacto. “Quando lesionada, na maioria das vezes, propomos ao
paciente um trabalho de fortalecimento muscular e fisioterapia para tratar a
dor e recuperar a função. Quando não há melhora, a cirurgia pode ser
necessária”, comenta Tiago Fernandes.
De acordo com o pesquisador, nenhuma das técnicas cirúrgicas
praticadas hoje é 100% eficaz. Numa destas técnicas, o cirurgião faz pequenos
orifícios na região da lesão, provocando um sangramento local. O sangue se
acumula na região operada, formando uma fibrocartilagem. “É um reparo, não há
formação de nova cartilagem, mas de uma cicatriz, o que permitirá ao paciente ficar
bem por uns dois a três anos. Depois voltam a dor e os sintomas”, relata. A
segunda opção cirúrgica consiste em retirar um pequeno pedaço de osso e
cartilagem de uma área do joelho que não sofre carga e enxertar na área da
lesão.
Quando o defeito a ser reparado é maior do que o pedaço de
cartilagem que poderia ser enxertado, os cirurgiões recorrem a uma técnica mais
complexa: transplante de tecido. “Retiramos o material de doadores com morte
encefálica, como se faz com outros órgãos”, conta Tiago Fernandes.
Terapia celular
Uma alternativa é o implante autólogo de condrócitos, uma terapia
celular que utiliza células da cartilagem extraídas do próprio paciente.
Disponível na Europa e nos Estados Unidos, mas não no Brasil, essa técnica se
inicia com a artroscopia, procedimento para a coleta de cartilagem saudável do
joelho de uma área que não sofre carga. As células são isoladas em laboratório,
multiplicadas e introduzidas em uma membrana. Depois de 30 dias, essa membrana
com as células é levada para o centro cirúrgico, onde será recortada no tamanho
do defeito da cartilagem e colada no local da lesão no joelho do paciente”,
descreve.
A pesquisa coordenada por Tiago Fernandes utiliza técnica
semelhante à de implante autólogo de condrócitos: avalia o uso de células-tronco
mesenquimais presentes na membrana sinovial ou na polpa do dente de leite que
são capazes de produzir a sua própria matriz extracelular ou membrana.
Os pesquisadores avaliaram inicialmente os processos de coleta,
isolamento e crescimento das células extraídas da membrana sinovial do joelho,
trabalho que resultou em um dos artigos publicado no Tissue Engineering. A
pesquisa foi conduzida no Hospital Sírio Libanês, que conta com todas as
certificações exigidas pela regulamentação científica e médica para
processamento de tecidos para uso em humanos.
Um dos benefícios da produção de membranas pelas células-tronco
mesenquimais é que essa técnica pode ser usada para tratar lesões maiores.
Também não requer o uso de banco de tecidos e busca de doadores, pois as
células são obtidas do próprio paciente. O objetivo, porém, não é regenerar ou
formar um tecido igual ao existente antes da lesão. “Buscamos o reparo, ou
seja, recuperar função, de forma a devolver os movimentos ao paciente e a tirar
a dor”, esclarece Tiago Fernandes.
Outro braço da pesquisa avaliou o uso de células mensequimais
extraídas da polpa do dente de leite. Todo o processo de produção da membrana a
partir dessas células é semelhante ao aplicado com as células extraídas da
membrana sinovial. O dente de leite, prestes a cair, é extraído pelo dentista,
encaminhado para laboratório e armazenado em nitrogênio líquido para se ter um
banco de células. A diferença está na quantidade de células extraídas da polpa
e no crescimento das células em laboratório para gerar a matriz extracelular
que será implantada no joelho.
Testes pré-clínicos
Após esses estudos, eles iniciaram os testes em animais de grande
porte para avaliar se o implante poderia reparar uma lesão. Nessa fase, foram
utilizados 14 porcos em miniatura. A terapia com células mesenquimais extraídas
de polpa dentária foi administrada em sete porcos em miniatura. Os demais
passaram pela terapia com células-tronco extraídas da membrana sinovial.
No experimento, os pesquisadores fizeram uma lesão de seis
milímetros de diâmetro na cartilagem nas patas traseiras dos animais. Num
delas, foi feito o tratamento com o implante de tecido e, na outra, não.
“Fizemos uma comparação estatística pareada: tudo que ocorreu do lado direito,
aconteceu do lado esquerdo. A carga que os joelhos de ambas as patas sofreu foi
a mesma em cada animal e eles não tiveram restrição de carga e movimentos”,
explica Tiago Fernandes.
As análises começaram seis meses depois da cirurgia de implante do
tecido engenheirado, prazo suficiente para que a cartilagem se recuperasse. Os
artigos científicos que trarão os detalhes da pesquisa ainda estão em processo
de publicação, mas os resultados mostram que o uso da membrana permitiu melhor
recuperação da lesão em ambos os tratamentos. Também indicam que é melhor
trabalhar com a membrana sinovial como fonte das células-tronco do que utilizar
as células da polpa do dente para o tratamento da cartilagem. Publicados os
resultados, o próximo passo será fazer os testes em humanos, com pacientes que
já apresentam lesões. O processo de aquisição das autorizações necessárias para
a pesquisa em pessoas está em andamento.
Por: Janaína Simões, da Agência
FAPESP