Terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Carnavalesco, cenógrafo, comunicador e pesquisador diz que a
africanização da Avenida é reflexo do poder do povo negro que faz a festa
acontecer e afirma que as escolas de samba colocam pautas espinhosas na mesa do
brasileiro e do Jornal Nacional.
Milton Cunha falou sobre a africanização do carnaval da Avenida em
entrevista à jornalista Maria Fortuna durante 'Conversa Vai, Conversa Vem', o videocast do jornal OGLOBO. Ícone do carnaval, o
pesquisador da cultura brasileira, cenógrafo e comunicador refletiu sobre
mudanças nos enredos ao longo da história e cravou: 'A escola de samba nunca deixou
de ser negra'. Este ano, por exemplo, a Mangueira apresenta enredo sobre povos
Bantu, escravizados e trazidos para a Pequena África no Rio de Janeiro, e a
Portela celebra Milton Nascimento. Apenas dois exemplos da força da negritude
nessa festa.
- Às vezes,
escolas negociaram com certos tipos de enredo brancos, históricos, oficiais,
chapa neutra ou receberam patrocínio. Mas é a tal da negociação da tradição com
a modernidade. Agora, negocia com a iuminação, o showbusiness, vedetes da
mídia. Isso sempre teve. Mas, na hora que perder o batuque, a bateria, o
quadril-tufão da mulata que é a tal, vai perder tudo. O talento é negro, do
povo periférico. Se não tiver a face gloriosa do desfilante, do empurrador de
carro, que reflita a sua comunidade, não vai ter força. Quem sabe compor,
dançar, cantar, desfilar é a negritude. Não adianta botar japonês, alemão. Não
sustentam. Todo mundo quer ver potência negra - disse Milton.
O carnavalesco resume o que, para ele, significa o
desfile:
- As escolas saem das periferias, ocupam o Centro e
se mostram na TV para 170 países, dizendo: 'Olha como somos artísticos, olha a
beleza do nosso povo'. É um momento de orgulho, de identificação das
comunidades gritando: 'Não somos bandidos. Não só produzimos mortandade,
chacinas. A maioria de nós é bacana e sabe fazer a arte. É uma forma de as
comunidades se colocarem numa pauta positiva em relação a tanta dureza da
vida'.
O fato de a religiosidade preta ter tomado conta
dos enredos da Sapucaí este ano também foi assunto da entrevista. Tendência que
começou com a Grande Rio celebrando Exu, em 2022, a exaltação à fé de matriz
africana faz a cabeça de escolas como Salgueiro e Beija Flor. O que significa
isso em um momento de intensa intolerância religiosa, com terreiros de umbanda e
candomblé sendo invadidos e destruídos? Milton explica:
- Macumba é o termo usado pela negritude como
sinônimo do batuque. Ele sistematizado é o candomblé e a umbanda. A escola de
samba é filha, tributária do batuque. Então, escola de samba é macumba, acabou.
Gostem ou não, meu amor. Os ogãs saíram dos terreiros e foram tocar na bateria.
As baterias tocam para os orixás. A macumba é causadora maravilhosa de toda
essa procissão, essa inteligência negra periférica - analisa. - Nesse momento
de intolerância e ascensão da direita querendo impor religião, dogma católico,
neopetencostal, a escola de samba joga na cara dos intolerantes a contribuição
do povo Bantu, as palavras em iorubá, a história da revolta dos Malês. A
formação cultural brasileira é tributária do povo negro, quer os
neopentecostais desejem ou não. Na hora em que o Rio perder a sua negritude, a
gente perde tudo. O Rio só é o Rio porque é uma cidade negra, indígena,
misturada.
Segundo Milton, "a escola de samba está
colocando na mesa da família brasileira temas periclitantes, os tabus, os
assuntos que são jogados para escanteio".
- Ela vem, joga no ventilador e, aí, todo mundo
fala, o Jornal Nacional fala, a universidade comenta, os bares, as esquinas, os
botecos, os almoços. Porque o Brasil não conhece o Brasil. E a escola de samba
oferece esse banquete cultural de: "Olhaí aqui como nós somos
potentes".
Não foi fácil para Milton Cunha levar esses
assuntos para a Academia. Professor, doutor, estudioso que é, ele viu muita
gente arrogante torcer o nariz para suas pesquisas:
- Quando propus estudar no mestrado e doutorado a
sistematização da estrutura narrativa da escola de samba, os caretas
empoeirados diziam: 'Não perde tempo. É um bando de bêbado. Vai estudar Machado
de Assis'. A cultura popular precisa entrar na Academia, esse saber é de um
país tropical. - Quando defendi o doutorado, fui enfeitadíssimo, era um carro
alegórico entrando na chatice universitária. Essa inteligência encastelada no
ar refrigerado... Por isso, não gosto de camarote. Escola de samba é suada.
Você via lá ara abraçar o povo. Uma rainha de bateria que não sua, não samba.
Aquilo ali é lugar de coração na boca e de lágrima.
Milton critica camarotes que programa shows na
mesma hora em que as escolas estão desfilando.
- A escola é soberana. É preciso que a
inteligência, a intelectualidade, o poder, a classe dominante olhe como a
melhor vitrine do Brasil. E para isso, precisa descer do salto. É preciso que o
Brasil dê um passo atrás e reconheça a identidade cultural do nosso povo. Em
100 anos, a negritude conseguiu vir da dor absoluta do abandono da tal da
República, da tal da Abolição da escravatura (faz
o sinal de aspas) , que jogou o nosso povo na esquina,
na rua, sem terra. Quando essa negritude começa a fundar os grêmios, ela começa
a se estruturar enquanto poder para peitar o abandono, peitar o
desaparecimento, o apagamento. A escola de samba é a reexistência do povo
periférico.
Ele encerra ressaltando um fato que valoriza:
- O bom do latino é que a gente não ficou na gana
do poder, a gente quer é aproveitar a vida. Como é que pode um povo que mora em
barraco, tem salário horrível, se desloca mal chegar no carnaval, a sirene
toca, e eles sorriem? Sorriem porque a vida tem que melhorar. Como diz Martinho
da Vila, não é que ela seja boa, é que as coisas vão melhorar. Então, é essa
esperança atávica de que através do tambor, a vida seja melhor.