Terça-feira, 05 de março de 2019
Dinheiro
apreendido pela Polícia Federal em maio de 2017 na Operação Patmos
De uma joalheria para uma
escola em São Gonçalo (RJ). Esse foi o atípico percurso feito no ano passado
por recursos recuperados na Operação Lava Jato — e que deverá ser
seguido por outros milhares de euros, dólares e francos suíços em breve.
Prestes
a completar cinco anos, a investigação que desnudou um esquema de corrupção na
Petrobras e em outros entes públicos pelo país se prepara para criar um inédito
e bilionário fundo anticorrupção, a ser investido em projetos de educação,
cidadania e transparência.
Em
paralelo, outros recursos recuperados em delações, acordos de leniência e
multas judiciais foram aplicados na reforma de escolas públicas no Rio, num
formato que se estuda replicar pelo país.
"Serão
milhões de reais por ano. É um legado permanente", afirmou à Folha o
procurador Deltan Dallagnol,
coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal do
Paraná.
No
total, a Lava Jato estima já ter recuperado pelo menos R$ 3 bilhões até aqui,
entre valores repatriados, multas e recursos devolvidos por delatores e
empresas.
No
Paraná, a Procuradoria é a atual curadora dos valores que darão origem ao
bilionário fundo anticorrupção. O primeiro aporte foi feito em janeiro: foram R$ 2,5 bilhões pagos
pela Petrobras, como parte de um acordo da estatal com o
Departamento de Justiça americano.
O
dinheiro deve render cerca de R$ 160 milhões por ano. Metade dos valores irá
para eventual ressarcimento de investidores da Petrobras que acionem a estatal
na Justiça.
A
outra metade será administrada por uma fundação independente, a ser formada por
membros e entidades da sociedade civil, que farão a seleção de projetos
anticorrupção a serem financiados.
O
formato não é convencional na Justiça brasileira. Mas é uma prática comum —e
com bons resultados— em outros países, diz o diretor-executivo da
Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão.
"É
uma novidade no Brasil, mas não é uma novidade fora", afirma, citando o caso
da multinacional alemã Siemens,
que, após ter admitido desvios pelo mundo, foi obrigada pela Justiça a fazer
investimentos em políticas anticorrupção em vários países.
O
fundo da Lava Jato, estabelecido em acordo entre a Petrobras, o Ministério
Público Federal e o Departamento de Justiça americano, pode bancar ações
"que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção".
Entram
na lista estudos sobre transparência, programas voltados a populações afetadas
pela paralisação de obras da Petrobras e até a reparação de direitos afetados
pela corrupção, inclusive difusos, como saúde, educação e meio ambiente.
É
algo semelhante ao que já ocorreu no Rio de Janeiro, onde parte dos valores
recuperados pela força-tarefa da Lava Jato foi direcionada à segurança pública
e à reforma de seis escolas estaduais com graves deficiências estruturais.
No
caso das escolas, a iniciativa foi concebida pela procuradora da República
Maria Cristina Manella Cordeiro, especializada em educação, que idealizou a
parceria entre o Ministério Público e o governo estadual. Os R$ 19 milhões
investidos vieram de multas pagas por diretores da joalheria H. Stern,
que fizeram delação premiada.
"É
uma nova forma de atuar. Em vez de ficar correndo atrás do prejuízo, a gente
previne", disse Manella à Folha.
As
iniciativas também coincidem com críticas ao chamado ativismo judicial, quando
o Judiciário extrapola suas competências e se imiscui na atividade de outros
poderes.
Os
procuradores refutam a acusação e afirmam que continuam cumprindo seu papel de
defender os interesses da população. "A gente tem que saber até aonde ir.
A escolha das escolas a serem reformadas, por exemplo, partiu da secretaria da
Educação, para não invadir a competência do poder público", afirma
Manella.
Para
o juiz Marcelo Bretas, que autorizou a aplicação dos recursos, a iniciativa
está "em total consonância" com a lei, que estabelece que multas
compensatórias por crimes com vítimas indiretas podem ser destinadas a
entidades públicas ou privadas com atuação social.
No
Rio de Janeiro, a ideia ainda está em execução: para assegurar a lisura dos
investimentos, o termo de cooperação técnica, assinado um ano atrás, exigiu a
licitação de projetos executivos, que ficaram prontos recentemente.
Só
agora vai começar a licitação das obras, num processo fiscalizado pelo FNDE
(Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). "E o risco de dar essa
verba ao estado, para depois desviarem tudo de novo?", comenta a procuradora.
"A gente tinha que dar transparência a esses recursos."
No
caso do fundo bilionário, a governança será feita por uma fundação. O MPF
articula a criação da entidade, em parceria com outros órgãos do poder público
e da sociedade civil, num processo a ser homologado pela Justiça.
O
termo de acordo prevê a consulta de pelo menos cinco entidades para a indicação
de nomes à fundação, a criação de um conselho fiscal, a vedação a qualquer
membro com atuação partidária e a prestação mensal de contas.
"A
crítica [de exacerbação do papel do judiciário] seria razoável se o Ministério
Público determinasse, de maneira discricionária, o destino dos recursos. Mas
não é isso que está acontecendo", diz Brandão. "Eles não estão se
apropriando dos recursos; estão envolvendo para a sociedade."
Para
ele, todos os fundos públicos, em especial os que congregam recursos judiciais
(de multas, acordos ou indenizações, por exemplo), deveriam seguir o mesmo
formato.
"Da
forma como é hoje, esses fundos acabam sendo contingenciados para fazer
superávit", afirma. "Há um descontrole muito grande; há pouquíssima
transparência ou governança."
A
parceria para as reformas de escolas no Rio, por exemplo, já foi replicada na
Procuradoria de Goiás, e deve ser estendida a outros estados.
Outras
organizações também defendem a iniciativa.
"É
um recurso que volta à sociedade em forma de prevenção, que cria uma cultura da
integridade", afirma Roni Enara, diretora-executiva do Observatório Social
do Brasil.
"Onde
começa a corrupção? Começa com pequenos desvios que são tolerados pela
população. A gente precisa falar na ponta, e precisa de investimento para
isso", diz.
A
fundação que irá administrar o fundo bilionário da Lava Jato ainda está em
criação. O Ministério Público Federal estima que esse processo dure até meados
deste ano.
Fonte: Folha de São Paulo